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Verdadeiro lugar de poder: A história de Laisla Leite

  • Foto do escritor: Letícia Simões
    Letícia Simões
  • 7 de mar. de 2023
  • 5 min de leitura

   - Não, você não está grávida não. Afirma o médico com o apoio do esposo.

E o que ela poderia dizer? São dois, são homens. Eles venceram. E doía…

A dor física da Laisla foi provocada por um acidente. Nessa época, morava em uma casa estilo colonial localizada nas terras herdadas pelo seu marido. Por enquanto eram apenas os dois, uma vaca e um escravo. O bebê até então era um papel constando "exame inconclusivo"

    Presumo que tenha imaginado uma casa de senhor de engenho pomposa, como na novela "das seis". E é bem provável seu questionamento em relação a exames de gravidez "nesta época". Mas a realidade é que esses fatos são bem atuais, não chegam a uma década. Quanto ao "escravo", foi "alforriado". 

     A sinhá Laisla (que estava mais para coronel), longe de sua vida urbana, cuidava dos afazeres do campo, os quais não se restringiam aos domésticos. Até porque estamos no século atual, né minha gente? 

Formou-se enfermeira, já casada. E gostaria de traçar um caminho profissional longe do hospital. Um ato corajoso já que o casal  mantinha-se com o suporte dos familiares e a maior chance de emprego seria nessa área.  E a herança?

   Bem, dívidas também foram herdadas. E a alternativa era ficar com o abandonado  pedaço de chão e a casa. Mesmo com a proposta de ganhar um apartamento mobiliado pela tia do esposo, seguiram, então, ao destino que lhes pertencia. 

  A casa resistia em pé há aproximadamente 180 anos, o ranger da boa madeira da porta principal era como um desabafo de sua longa existência. De qualquer forma, em sua imponente arquitetura, abria-se para os dois lados convidando os novos moradores a adentrarem em sua longígua história. Uma reforma amenizou a sua solitude infinita. A mata ao redor era espinhosa e tinha nome de mulher. Jurema maltratava o gado, que berrava de fome à porta da casa. 

  Nada assustou a coronel. Plantava e administrava tudo com seu marido. E nada mais justo que se mimar um pouquinho né? No desejo de ter um cavalo, compraram uma égua, a qual em sua selvageria inocente deixou uma enorme cicatriz em seu pé e mais uma ferida em sua alma. Contando em poucos detalhes, a Laisla vinha de uma sucessão de traumas como o abandono do pai e a fome, na infância.

    Seu grito de dor se fundiu ao relinchar escandaloso da égua. Ao montá-la em uma sela frouxa caiu e sentiu todo o peso do animal em seu pé.  Já o bebê  manteve-se quieto, se já foi motivo de preocupação a possibilidade de estar ali protegido na barriga, imagine a confirmação de sua chegada em um cenário que o gado berrava de fome? Recebeu a radiação do exame para avaliar os estragos do pé de sua mãe, que  seguiu sua intuição em não  tomar os remédios prescritos. Porém, consentiu o serzinho de que aquele não era o melhor momento e acatou o veredito do doutor. Laisla realmente não estava mais grávida. 

      

Como então curar as feridas desse episódio? Sendo enfermeira possuía o conhecimento geral sobre o tratar das camadas da pele. Apesar disso e de seguir todas as orientações dos especialistas, as chagas teimavam em permanecerem abertas. Seria algum protesto do corpo? Laisla não queria deixar seu posto e simplesmente seguiu sem se permitir sofrer, sem ser vulnerável e sem ser cuidada. No entanto comprovou que o corpo não fala, grita. Relutante viu-se obrigada a receber o auxílio de sua mãe. 

         Mesmo com a conquista de andar após dois meses, a depressão enfraqueceu suas pernas. Refletindo a sua recente perda, mais uma vez, caiu  no sentimento de rejeição e  abandono. Esses, que vez ou outra  visitavam-na. 

  Simplesmente seguiu. Mulheres fortes… Já parou para pensar que suas histórias geralmente são regadas por muito sofrimento? Chefes de família, cuidadoras, heroínas. Cuidar; seguir; cair, aguentar; resolver; cuidar; cuidar e seguir. São as únicas alternativas. Perdoe-me se eu ferir o feminismo agora, mas acho que nosso maior erro atualmente é só seguir, não existem espaços para a vulnerabilidade. Perdeu-se a doçura, a delicadeza. Os homens ainda são destaque em doenças crônicas justamente por não admitirem fragilidade. Estamos SEGUINDO pelo mesmo caminho? Uma coisa é certa: "mulheres não choram,  mulheres faturam". 

   Bem, a nossa Rambo continuou sua jornada. Iniciou sua especialização em práticas complementares em saúde, com ênfase em acupuntura e encontrou a oportunidade de conhecer uma sessão de constelação familiar sistêmica. Os frutos da terra vieram, literalmente. Vendia seus produtos orgânicos na feira e um de seus primeiros investimentos foi na terapia. Sagaz!     

   Constelando, compreendeu o impacto do seu sistema familiar em suas dores. As mulheres de sua família geralmente passavam por complicações no parto. E o que ela estava fazendo? Seguindo-as… Recuperou o vínculo com a sua mãe biológica, já que precisou ser adotada ainda bebê para não passar fome. Desde então vivenciou muitos processos de cura no corpo e na alma. No momento em que cessou a caça aos culpados, ela se acolheu.

   A mãe nasceu. Ayla estava em seu ventre. Mas, sabendo de todo o histórico familiar ficou mais atenta do que nunca. Esse estado de alerta se uniu a outros percalços. A pressão de todos os lados elevou a do corpo, cedendo espaço para a pré-eclâmpsia, versão mais pacífica daquela (eclâmpsia) que havia tirado a vida de algumas ancestrais, como sua avó. Os remédios de pressão foram encaixados na rotina. Ayla dava sinais de que o aconchego do seu útero-lar já não era dos melhores. 

   Ao procurar por um obstetra no serviço privado, encontrou um que fez o parto de sua mulher às pressas devido às mesmas complicações da Laisla. E por coincidência, Ayla também era o nome de sua filha. Sensibilizado e preocupado, emitiu um relatório para que a maternidade pública tomasse as providências necessárias, já que sua bebê poderia precisar de uma UTI. Mesmo  com o relatório e com as queixas da mãe, insistiam em dizer que estava tudo sob controle. No mais, tratava-se apenas de ansiedade. Seriam a constelação familiar e todos os processos vividos uma farsa? Só serviram de gatilho para aumentar seu sofrimento?

       Nessas andanças de mãe poliqueixosa no serviço de saúde tentando uma solução para o seu problema, enfim sua necessidade é atendida. Reconhecida pela colega do cursinho, agora médica, Laisla prova o seu autoconhecimento e tem a oportunidade, que outras antes não tiveram, de ver a sua filha. 

     A partir daí ela parou, não que seguir não seja importante… Ayla naquele momento era um lugar de descanso, o seu reencontro com o feminino. A parada obrigatória para ser vulnerável e pedir ajuda, mas também para exercer a potência de uma mãe na defesa de seu filho. Era esse o seu verdadeiro lugar de poder. Não se preocupava mais em fazer. Aprendeu a esperar, a sentir. E nesse movimento tornou-se uma enfermeira de feridas emocionais. 


Laisla Leite é enfermeira pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em saúde mental. Mentora, terapeuta, consteladora familiar. Ela conta mais detalhes de sua história em um E-book e atua no movimento de cura em grupo para mulheres.


 

 
 
 

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